Brasil Não Cumpri Sua Obrigação Com os Quilombolas

Brasil não cumpri sua obrigação com os quilombolas, mesmo sendo o responsável pela obrigação de proteger os direitos das comunidades quilombolas de Alcântara.
San José, Costa Rica, 13 de março de 2025.Na sentença notificada hoje no caso Comunidades Quilombolas de Alcântara v. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) declarou o Estado brasileiro internacionalmente responsável pelas violações dos direitos humanos de 171 comunidades quilombolas localizadas no município de Alcântara, Maranhão, por diversas violações de seu direito à propriedade comunal, bem como pela violação de outros direitos. Especificamente, o Tribunal declarou a violação dos direitos à propriedade coletiva, à liberdade de locomoção e residência, à autodeterminação, à consulta livre, prévia e informada, aos impactos no projeto de vida coletivo, à violação dos direitos à proteção familiar, à alimentação e moradia adequadas, à educação, à igualdade perante a lei, à proibição de discriminação por raça e condição socioeconômica, às garantias judiciais e à proteção judicial, em detrimento das Comunidades Quilombolas de Alcântara.
As Comunidades Quilombolas são comunidades afrodescendentes inicialmente formadas por pessoas que escaparam da escravidão ou que já eram livres. Em virtude de sua relação particular com o território em que vivem, sua cosmovisão, identidade cultural e formas de organização, as Comunidades Quilombolas se caracterizam como povo tribal. Os fatos do caso estão relacionados com as consequências decorrentes da instalação e o funcionamento do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) em seu território.
Em agosto de 1979, o Ministro da Aeronáutica manifestou seu interesse em utilizar uma parte do território de Alcântara para a implementação de um centro de lançamento espacial brasileiro. Como consequência, em 12 de setembro de 1980, o estado do Maranhão declarou de utilidade pública para fins de desapropriação uma área de 52.000 hectares em Alcântara, a fim de implementar o CLA. Em 1º de março de 1983, o Governo Federal criou oficialmente o CLA com o propósito de executar e apoiar as atividades de lançamento e acompanhamento de dispositivos aeroespaciais, bem como realizar testes e experimentos de interesse para o Ministério da Aeronáutica, relacionados à Política Nacional de Desenvolvimento Aeroespacial. A partir de 1983, iniciou-se a instalação de uma base espacial na cidade de Alcântara. Entre 1986 e 1987, foram realizadas as duas primeiras fases de deslocamento obrigatório das comunidades quilombolas que residiam na área declarada de interesse público, as quais foram reassentadas em 7 agrovilas. Em 2001, um total de 312 famílias de 31 Comunidades Quilombolas haviam sido deslocadas e reassentadas em sete agrovilas, restando pendentes duas fases adicionais de deslocamento. Em 8 de agosto de 1991, o Presidente da República ampliou o território objeto de desapropriação decretando de utilidade pública, para fins de desapropriação, 62.000 hectares de terra no município de Alcântara; contudo, o reassentamento de mais famílias nunca foi realizado.
Entre 2008 e 2023, foram realizados vários procedimentos administrativos e judiciais relacionados à identificação, delimitação e titulação das terras das Comunidades Quilombolas de Alcântara, sem que se chegasse a um acordo ou a uma decisão final. Finalmente, em 19 de setembro de 2024, o Brasil e as Comunidades Quilombolas de Alcântara celebraram um “Acordo de Conciliação, Compromissos e Reconhecimentos Recíprocos” no qual, entre outras disposições, se estabelece que a área de 78.105 hectares reconhecida no RTID, excluindo a área de 9.256 hectares destinada ao CLA, será delimitada e titulada em favor das Comunidades Quilombolas de Alcântara.
O Estado realizou um reconhecimento parcial de responsabilidade internacional pela violação do direito à propriedade coletiva, pela falta de demarcação e titulação do território, e pela violação do direito à proteção judicial, devido à demora processual e à ineficácia das autoridades estatais para o exercício do direito à propriedade coletiva.
A Corte constatou que o Estado violou os direitos à propriedade coletiva e à livre circulação e residência por: (i) não cumprir sua obrigação de delimitar, demarcar, titular e desintruir o território das Comunidades Quilombolas de Alcântara; (ii) conceder títulos individuais de propriedade em vez de reconhecer a propriedade coletiva em favor da comunidade; e, (iii) não cumprir seu dever de garantir o pleno uso e gozo do território coletivo por parte das comunidades, incluindo medidas compensatórias em razão do impacto das restrições sistemáticas durante as “janelas de lançamentos” no uso de seu território e em seu direito de circulação para o exercício de seus cultos, de sua atividade econômica e de sua alimentação. Ademais, declarou a responsabilidade do Estado por não cumprir sua obrigação de realizar uma consulta livre, prévia e informada às Comunidades sobre medidas suscetíveis de impactá-las.
Adicionalmente, o Tribunal constatou que a falta de resposta judicial às suas reivindicações gerou intensos sentimentos de injustiça, impotência e insegurança, afetando, assim, o projeto de vida coletivo em seu território tradicional. Somado a isso, constatou que o reassentamento das Comunidades Quilombolas de Alcântara nas agrovilas prejudicou a disponibilidade e a acessibilidade dos recursos naturais que as comunidades tradicionalmente utilizavam para sua alimentação. Além disso, constatou que os membros das Comunidades Quilombolas de Alcântara não contavam com serviços e infraestrutura indispensáveis em suas moradias, tendo também enfrentado restrições por parte das autoridades estaduais que impediram a modificação das casas que lhes foram atribuídas e a construção de novas casas nas agrovilas, o que prejudicou a instalação de novas famílias ou resultou na separação das famílias reassentadas. A Corte evidenciou que o Estado falhou em sua obrigação de adotar medidas para preservar as práticas próprias da economia de subsistência das Comunidades Quilombolas de Alcântara, impactando, assim, seu direito à alimentação culturalmente adequada. Da mesma forma, advertiu que o Estado implementou uma série de restrições nas agrovilas que impediram o acesso dos membros das comunidades à vida, às práticas, aos bens e aos serviços culturais, como o acesso a cemitérios, praias, celebração de festas religiosas, entre outros. O Tribunal também constatou que as comunidades enfrentam obstáculos de acessibilidade material à educação, pois nem todas as agrovilas dispõem de escolas e/ou transporte regular para acessar instituições de ensino em agrovilas próximas.
Finalmente, a Corte determinou que a omissão estatal em titular as terras, em garantir a proteção à família e o conteúdo mínimo dos direitos à alimentação adequada, moradia adequada, educação e participação na vida cultural nas agrovilas, a partir de 10 de dezembro de 1998, e a posterior ausência de medidas progressivas para garantir o gozo desses direitos constituíram atos de discriminação. Isso porque tais fatos se inserem em um contexto de desigualdades desproporcionais, com origens históricas, em relação às quais o Estado não tomou medidas suficientes para reverter.
Em razão dessas violações, a Corte ordenou, entre outras, as seguintes medidas de reparação: (i) adotar ou concluir as ações pertinentes para garantir o direito de propriedade coletiva a todas as comunidades, oferecendo-lhes um título coletivo que reconheça os 78.105 hectares de seu território e adotando as medidas necessárias para delimitar, demarcar e desintruir adequadamente a propriedade; (ii) abster-se de realizar atos que, alheios ao funcionamento do CLA, possampermitir que agentes do próprio Estado ou terceiros, agindo com sua tolerância, possam afetar a existência, valor, uso ou gozo do território mencionado, em detrimento do acordado no Acordo firmado entre as partes; (iii) instalar uma mesa de diálogo permanente em comum acordo com as comunidades; (iv) realizar consultas prévias, livres e informadas; e, (v) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional.
O Juiz Humberto Antonio Sierra Porto e a Juíza Patricia Pérez Goldberg deram a conhecer o seu voto conjunto parcialmente dissidente. Os Juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo C. Pérez Manrique também deram a conhecer seu voto conjunto parcialmente dissidente. Por sua vez, a Juíza Verónica Gómez deu a conhecer seu voto parcialmente dissidente.
A composição da Corte ao proferir a presente sentença foi a seguinte: Juíza Nancy Hernández López, Presidenta; Juiz Humberto Antonio Sierra Porto; Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot; Juiz Ricardo C. Pérez Manrique; Juíza Verónica Gómez; e Juíza Patricia Pérez Goldberg. Estiveram presentes, além disso, o Secretário Pablo Saavedra Alessandri e a Secretária Adjunta Gabriela Pacheco Arias. O Juiz Rodrigo Mudrovitsch, de nacionalidade brasileira, não participou da deliberação e assinatura desta Sentença, de acordo com o disposto nos artigos 19.1 e 19.2 do Regulamento da Corte.
Fonte: Corte IDH. Comunicado de Imprensa 18/2025. O presente comunicado foi redigido pela Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo de responsabilidade exclusiva da mesma.